sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Vércia: olhos voz da canção



Ela é uma das grandes revelações do canto
feminino na Bahia. Sua inspiração
pode imprimir um passeio por temá-
ticas que abordem a diversidade, a comple-
xidade humana quando o assunto for sexua-
lidade, mas, além disso, seu canto rasga e
convida à doçura como se esta fosse comum
a todos os seres humanos. Vércia Gonçalves
tem sido corriqueira em cenários que efer-
vescem samba e outras pérolas do cancioneiro
brasileiro na cidade da Bahia. Cada apresen-
tação da cachoeirana, de 34 anos, nos apre-
senta a novas descobertas de possibilidades
estéticas: mesclas de motes das religiosidades
afro-brasileiras com o mais tradicional dos
sambas, mais o repertório urbano e luminoso
de colegas suas como Gal Costa.

Os olhos incrivelmente belos acompanham
a voz. A liminaridade de sua presença, entre
masculino e feminino, traz à tona a qualidade
vocal eterna de Aracy de Almeida; e, assim, se
desvenda Vércia como uma promessa desme-
dida para engrandecer ainda mais a tradição
feminina da Bahia quando a deixa é canção.
Apesar de trilhar uma trajetória de mais de dez
anos de carreira, Vércia ainda está escondida
para o grande público baiano. Ela qualifica as
noites e as tardes musicais da Bahia, cantando
em lugares como o mítico bar Zanzibar, se
cercando de colegas e amigos, como o seu
maior incentivador: o cantor Carlos Barros.

É outra que evidencia a negritude de nossa
gente e que à frente de meras questões da
necessária afirmação etnicorracial, produz ex-
periências de fruição que só a verdadeira in-
ventividade pode oferecer. Óbvio que nem
sempre foi assim. A carreira de Vércia é um
aclive a favor das melhoras que o aprendizado
e o estudo garantem, e, ralando como deve ser,
a cantora presta homenagens a Clementina de
Jesus, Clara Nunes, Maria Bethânia... Sangra
emoção e simplicidade, o drama na medida
certa, o ar menino menina, afinação, a voz
rascante são elementos da artista que se cons-
trói para a raridade.

É negra a beleza castanha dos olhos de
Vércia. E ela vaza de qualquer unilateral
comparação com a grande Mart’nália. Vér-
cia é a parte da Bahia que pode resultar

universal.

(Publicado no Jornal A Tarde, Página 3, Opinião, 27 de setembro de 2014)

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